segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O método de mentir para privar o outro do mundo real







por: Sônia T. Felipe

Todos nós usamos um aparelho celular. No princípio, nos idos dos anos 1980, o "tijolo" era usado apenas para falar com os amigos, os familiares e, vez por outra, com colegas e chefes do trabalho. Por vezes, ele nos salvava de ameaças, chamando os números dos socorristas e resgatistas. Eram tempos mais tranquilos, embora já houvesse telefonemas que envenenavam, tipo os repletos de fofocas e disse-me-disse. Ali tínhamos uma réplica do costume mais antigo dos humanos com o neo-córtex pré-frontal hipertrofiado: falar do outro algo que o reveste com roupagens que não são do figurino dele, para que ele apareça aos olhos daquele que ouve a ficção como personagem outro, um camaleão, não como o que de fato a pessoa é. Trocando as palavras: desenhar o outro como um camaleão para melhor manipular quem nos ouve a falar dele. Isto mesmo: mentir sempre está associado ao desejo de manipular. Todo mundo pensa que somente o objeto alvo da mentira é prejudicado. De fato, prejudicamos a estrutura moral e emocional de quem ouve nossas mentiras ou as mentiras pregadas por outros. Do mesmo modo, estão nos prejudicando moral e emocionalmente ao despejarem fake news. O assédio aprisiona a mente da vítima dele à mente do manipulador.

Com a criação das redes sociais, nosso celular nos dá acesso infinito a zilhões de mundos criados por bilhões de humanos. Um avanço tecnológico? Com certeza. Mas a tecnologia avançada não veio em ritmo capaz de nos deixar ser educados para saber que aqueles zilhões de mundos, criados por bilhões de outras mentes, não são o nosso mundo real, são os mundos deles. Quando nossa mente está mergulhada no mundo de outras mentes, nós estamos alienados. Ali começam os distúrbios, porque os fios que nos ligam a nós mesmas foram cortados.

Quando nos juntamos a dezenas, a centenas ou a milhares de outras mentes sintonizadas na mesma frequência de dois ou dez desses canais impulsionadores de mundos fantasiosos para dentro do nosso mundo mental, estamos alojados em alguma sede que mais parece um imenso hospício sem paredes, a céu aberto. E justamente nessa condição estamos absolutamente aprisionados pelos fios da rede que nos mantêm detidos naqueles grupos, naqueles mundos outros, nos mundos dos outros, bem longe do nosso.

Nada é capaz de conter os delírios da mente de quem se entorpece com tanto veneno todo dia. O mundo de cada mente, uma vez enfiado mente adentro de outra pessoa, torna-se para essa um veneno, pois o cérebro da gente mal está preparado para lidar com os mundos que nossas percepções nos fazem criar, imaginem lidar com as impressões que são do mundo mental alheio.

As pessoas plugadas em seus celulares e apreendidas pela armadilha das redes que as mantêm aprisionadas aos mundos fantasiosos que lhes são despejados na tela, sem parar, enlouquecem. Conversar sobre seus hobbies, nem pensar! Convidar a amiga para assistir um filme, nem se cogita mais, pois na sala de cinema não pega sinal de celular. Passear à beira-mar ou por uma trilha, sem levar o maldito celular, é como planejar um suicídio. Fazer uma comidinha e convidar duas ou três amigas para vir jantar, sem que nenhuma delas leve para a sala ou para a mesa o maldito aparelho, nem pensar. Aonde quer que a gente vá, está sempre aprisionada pelos raios celulares. Os do próprio e os de todas as outras pessoas à volta.

Criamos um mundo de mentes aprisionadas às “notícias” que são despejadas nem se sabe bem por quem, muito menos por que, um mundo de delirantes que vivem nele, paralelamente à vida do próprio corpo no mundo real da própria casa, do próprio trabalho, do passeio que se faz.

A mente plugada em notícias bombásticas -- notem que as fake news sempre são atiradas contra nossos celulares como bombas --, está sem reserva alguma para ter aquela paz que o pensamento requer. As mentes plugadas nas fake news não pensam mais, apenas fervilham. E quando escrevo fervilham, penso no turbilhão de emoções queimantes, cáusticas, que corroem a alma de todas as pessoas, plugadas em seus celulares como se agarradas a um copo de água no deserto. As pessoas sorvem o veneno, porque estão adictas às emoções fortes disparadas por ele.

Mas emoções fortes, como as do medo e da curiosidade, a natureza botou em nosso cérebro apenas para nos orientar nas tarefas destinadas à preservação e à sobrevivência: encontrar comida, fugir da predação e garantir a preservação.

Não é para menos que a maior parte das descargas lançadas por grupos nas redes sociais onde estão capturadas as mentes têm a ver com as três tarefas requeridas de quem deseja viver e sobreviver a algum percalço. Dou um exemplo do veneno destilado há anos em nosso país: “Se o PT ganhar a eleição, o Brasil vai se transformar em uma Venezuela, uma Cuba, uma China”. A pessoa não sabe nem onde fica a Venezuela, Cuba ou a China, acha que fazem fronteira com a Argentina, se bobear acham que faz “fronteira” com o Pará. Mas o que conta é que "Venezuela" é apenas o que toda gente viu na tevê: prateleiras vazias nos supermercados e uma multidão cruzando a fronteira para buscar o que comer e onde morar no Brasil.

Vejam que prateleiras vazias nos foram atiradas à cara durante o governo golpista e o governo fascista, não durante os governos petistas que nunca descuidaram do abastecimento. Além disso, saíram do Brasil em busca de melhores salários e oportunidades, milhões de brasileiros. Em 2014, eram 2,5 milhões morando, estudando e trabalhando em outros países. Em 2021, o número bateu 4,2 milhões, a "Venezuela já é aqui", mas não pelas mãos dos governos petistas. O veneno da fake news, “não vamos virar uma Venezuela” tocou no impulso mais básico de todo corpo animal: comida, moradia, e futuro.

A receita de toda fake news pode ser desmistificada por aí. Se a fake news causa medo, é porque ela consegue tocar nas três teclas fundantes da mente animal: medo de não ter comida, medo de sofrer predação, medo de não ter segurança para continuar vivo.

Quem está a ler este texto pode escolher aí umas cinco fake news e fazer sua análise dos três fios que as tecem. Todas têm seus cordões acionando diretamente no cérebro e na mente dos animais plugados algum circuito ligado ao medo de faltar alimento, que pode ser comida ou palavra (“o Lula vai perseguir igrejas”), ao medo de perder a liberdade física, moral e política (“o Lula vai regular o uso das redes sociais e tirar a liberdade de expressão”), ou ao medo de não conseguir levar a efeito seu propósito de seguir vivo e de melhorar de vida de acordo com o padrão imposto pelos trilionários, pelos “mercadores liberais” (“o Lula ou o PT vão converter o regime político e econômico em comunista, no lugar do capitalista que tanto apreciamos”).

Por isto mesmo, as fake news alcançam seu propósito maior: manipular a mente das pessoas, manipulando suas emoções primárias. Uma vez inspiradas pelo medo, as pessoas viram bonecas do ventríloquo que maneja seus cordões emocionais e as mantêm atreladas, sem qualquer liberdade de pensamento e de expressão, aprisionadas no mundo mentiroso criado para detê-las, o mundo das fake news, a grande matrix emocional que padroniza tudo pelo medo, pelo ódio, pela raiva, pelo ressentimento, pelo desejo de vingança, pela sede de matança.
A cura para tal demência coletiva está em alguns dias de falta de luz, alguns dias de prisão, alguns dias com alguma doença grave. Não são soluções desejáveis, não são propostas, mas seriam curadoras. Elas são formas seguras de tratamento contra a adicção ao veneno das fake news que adoece a alma dessa gente e as fanatiza.

Sem celular à mão, cada indivíduo vai ter que encarar apenas as necessidades do seu corpo e do corpo dos seus, cuidar dessas necessidades que são constitutivas do mundo real. Ninguém vai subir ao mundo das alturas, atado a um monte de balões inflados de ar (fake news), ninguém mais vai olhar o mundo real com olhos delirantes, danificados para vê-lo, ninguém mais vai ouvir palavras que disparam emoções queimantes que devastam os circuitos neuronais saudáveis do cérebro e põem o sujeito em estado adrenal permanente: agitação e pânico, o estado dos animais ameaçadas pela presença de um predador na área.

Disparar adrenalina dia e noite nos próprios circuitos mentais corrompe o funcionamento normal do cérebro, causa imenso estresse e liquida de vez com a capacidade de pensar, de tomar decisões, de saber o que escolher para desenhar sua vida sem atrelar esse desenho a um padrão malevolente que lhe estão impondo há anos, por conta do assédio moral e da manipulação emocional. Disparar tais venenos no cérebro alheio é assédio emocional, mental e moral. Animastê!



|Sônia T. Felipe é doutora em filosofia moral e teoria política pela Universidade de Konstanz, Alemanha. Autora de: Galactolatria, maudeleite (link). O presente artigo foi originalmente publicado em seu perfil, no Facebook, em 07 de novembro de 2022

|Imagem: Depositphotos, via Google Images


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O Caderno Livre
é um blog em estilo pessoal, informal, leve, sem maiores pretensões. Algo à maneira dos bloguinhos antigos, os do início desta aventura de blogar. Webston Moura, seu administrador, é brasileiro do estado do Ceará, natural de Morada Nova, mas mora em Russas, no Vale do Jaguaribe. É Tecnólogo de Frutos Tropicais e poeta.
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